Treinadora da seleção brasileira de ginástica artística, Iryna Ilyashenko diz que sua adrenalina está em baixa após as medalhas recém-conquistadas por sua equipe nos Jogos de Paris. “Quando tudo isso acaba, cai a emoção, cai a adrenalina, cai tudo.”
Natural de Dnipro, na Ucrânia, e naturalizada brasileira, Iryna treina a seleção desde 1999.
A chegada dela e de seu conterrâneo Oleg Ostapenko ao país mudou completamente os rumos da equipe. O nível de exigência dos treinos aumentou, e nomes como Daiane dos Santos e Daniele Hypolito despontaram, levando o Brasil a outro patamar em competições mundo afora.
Iryna afirma que o ouro conquistado por Rebeca Andrade na final do solo contra Simone Biles, na segunda-feira (5), foi uma surpresa. E arrisca dizer que a norte-americana, tida como a maior de todos os tempos, não deve permanecer por muito mais tempo nas competições.
“Eu nunca vi a Biles cair do jeito que ela caiu, sabe? Eu acho que ela já não está mais aguentando, já chegou no limite dela”, diz.
Leia, abaixo, a entrevista dela à coluna.
Antes de ligarmos o gravador, você me disse que a sua emoção tinha ido embora, que você não conseguia sentir mais nada. Como é isso?
Quando eu estudava na universidade [na Ucrânia], um cientista famoso, Pyotr Lesgaft, dizia que o esporte de alto nível vicia como uma droga. Se você experimentou uma vez, você nunca sai dessa. Então, quando você compete, quando as meninas competem e ganham medalha, você sente uma emoção, parece que você está tomando alguma coisa.
Quando tudo isso acaba, cai tudo. Cai a emoção, cai a adrenalina, cai tudo.
E você sente que precisa mais uma vez sentir isso. Aí você volta para o ginásio e começa a trabalhar de novo para mais uma vez sentir isso. É impressionante, sabe? Quantas vezes eu já disse: ‘Vou parar, chega, não aguento mais’.
E a cada vez que acabava [uma Olimpíada], eu caía e começava a engatinhar tudo de novo, para sentir essa emoção mais uma vez.
Com as ginastas acontece isso também?
Elas vão passar pelo mesmo processo. Quem já passou por uma Olimpíada sabe. A Julia [Soares], por exemplo: é a primeira vez [em Jogos Olímpicos]. Ela ainda não sabe como vai se sentir agora, quando tudo acabar. Ela vai ter que voltar à rotina. É muito difícil, muito difícil. Por isso eu entendo quando acontece algo com atletas que deixam o esporte, que bebem. Eles não conseguem voltar à vida normal.
A Rebeca já passou por isso, pelo fim de uma Olimpíada. Como ela reagiu?
A Rebeca já passou por isso. Mas, quando sair do esporte, ela vai ter o ouro.
Depois do ouro, há ainda o mesmo estímulo, o mesmo entusiasmo?
A gente sempre tem que sonhar. Sonhávamos com medalha para a Daiane [dos Santos], para a Jade. Chegamos muito perto [em outras Olimpíadas]. Mas não estava dando, porque medalha olímpica é única.
E tem muita gente [de outras equipes] trabalhando [para ganhar as competições]. E Olimpíada sempre tem surpresa. Por exemplo, ela [Rebeca] conquistar medalha em cima da [ginasta Simone] Biles, medalha de ouro, para nós foi uma surpresa. Porque a Biles foi incansável, anos e anos [competindo], desde 2013. E ela podia fazer qualquer coisa. Saía fora do tablado, ganhava. E agora já não é bem assim. Agora tem a Rebeca.
Antes tinha a Daiane, a Daniele. E nasceu a Rebeca. E depois vai nascer outra. Pode ser uma Natália, uma Helena
Vocês não imaginavam que poderia vir esse ouro, né?
Ah, por dentro a gente sonhava. A parte artística da Rebeca não tem comparação com qualquer outra. Então, se outra ginasta fizesse qualquer errinho, a Rebeca poderia ganhar. E ela fez [o ouro].
Todo mundo sabia que tinha uma chance. Mas a gente nunca fala nada para as atletas, porque a pressão psicológica mata. É muito difícil de se lidar.
Quando a Flavinha caiu, você afirmou que as atletas agem de forma diferente diante da dor, do sofrimento. Como é isso?
Atletas que chegam nesse nível são diferentes. Elas não são crianças normais. Elas estão prontas para superar a dor. Elas têm que acordar cedo, dar o máximo no treino. Mesmo quando acordam e não querem trabalhar, não querem se levantar da cama, não querem tomar café nem sair de casa, elas têm que sair e treinar.
Então essas pessoas não são normais. Pessoas normais não chegam nesse nível. São pessoas especiais, que precisam ter um caráter esportivo, que têm que gostar de competir. Eu, por exemplo, compito em tudo. Se eu andar do teu lado, tenho que chegar primeiro. Em cada coisa, eu vou competir. Eu vou correr de manhã, vou competir comigo mesma. Por isso a gente está aqui.
Todas elas são assim. Um ser humano normal tem cansaço, fica preguiçoso. Tem vontade, come o que quer. Elas, não. Elas não podem. Elas passam anos e anos seguindo uma rotina diferente, e isso é muito difícil. Muito difícil.
Elas são seres superiores.
Certa vez, na União Soviética, um ginasta caiu na competição, perdeu a memória, e teve que competir.
A Flávia também. Ela caiu, se levantou sangrando. Você acha que ela, em algum momento, pensou em não competir? Nem passou isso pela cabeça de ninguém, nem da Flávia, nem do treinador.
O que leva uma atleta de altíssimo nível como a Simone Biles a cair em uma trave?
Ela é humana, né? Ela sentiu a pressão. Ela já não é muito jovem, ela tem muitas medalhas. E cada vez que você conquista medalha, aumenta a pressão, aumenta a cobrança. Por isso, quando está mais velho, fica difícil competir.
A Rebeca, então, já se sente mais cobrada?
Com certeza, dentro dela, a Rebeca já sente uma cobrança maior. Mas ela consegue lidar com essa cobrança. A Biles está há dez anos no pique. É muito difícil. Por isso teve aquele problema em Tóquio. Ela não aguentou.
Se você [ginasta] não tem medalha, você entra na competição sem ter o que perder. Mas quando já tem, você tem o que perder.
O que você achou de a Rebeca ter ficado fora do pódio na disputa na trave?
Eu não achei nada, eu achei normal. Talvez tenha sido bom para ela fazer o máximo no solo.
A Rebeca parece muito calma antes das competições.
Agora, né? Mas quando era criança…
Todo mundo é igual. Ela agora já é mestre, faz algo que para ela, tecnicamente, fisicamente, é fácil, entende? Agora, por exemplo, vamos supor, se colocar uma coisa muito mais difícil, ela já vai ficar nervosa, já sente insegurança.
E logo antes da competição?
Não tem como ela não ficar nervosa. Claro que ela fica nervosa. A diferença é que essas pessoas superiores conseguem se controlar. As pessoas que, na escola, tremem numa prova, suam no teste de matemática, não fazem esporte.
Essas pessoas não são normais. Pessoas normais não chegam nesse nível. São pessoas especiais
Rebeca seguirá por muito mais tempo ainda na ginástica? Qual é o limite?
Eu não sei. Agora a Olimpíada passa, a emoção cai. Começa outro ciclo, e ela vai ver. Se aguentar fisicamente e mentalmente, acho que ela fica.
Já a Biles, acho que ela não vai mais ficar. Eu nunca vi a Biles cair do jeito que ela caiu, sabe? Eu acho que ela já não está mais aguentando, já chegou no limite dela.
Qual é a tua relação com elas? Não dá para dizer que seria como uma mãe, já que todas elas têm sua família.
Não posso ficar como mãe. Porque mãe é carinho, é pena. Na competição, você tem que manter liderança sobre elas. A relação tem que ser boa, amigável, mas tem que ter distância. Há cobrança, uma grande cobrança.
Do fundo do coração: quando a Simone Biles erra ou cai, o que você sente?
Se eu achar que é uma maravilha, a minha [ginasta] vai cair também. Sempre. E você tem que querer ganhar sem torcer contra ela [adversária], porque ela também trabalhou.
Então eu me mantenho calma, eu nunca expresso nada, eu não torço contra. Eu torço para que a minha acerte. Eu morri de pena da ginasta romena [que caiu para o quarto lugar depois de uma revisão das notas da ginástica]. Ela fez um solo super bom.
É melhor então vencer sem uma queda da adversária?
É muito melhor vencer sem a queda [da adversária]. Mas se caiu, azar. As nossas também caem.
É possível existir uma nova Rebeca?
Claro, daqui a pouco vai nascer. Antes tinha a Daiane, a Daniele. E nasceu a Rebeca. E depois vai nascer outra. Pode ser uma Natália, uma Helena. É claro que vai nascer. São ciclos. Quando um deles termina, as pessoas vão embora, outros talentos surgem.
Esta geração foi beneficiada pelo talento da Rebeca ou houve mudanças estruturais que ajudaram a melhorar a performance da nossa ginástica, e que trouxe uma medalha inédita por equipe?
É o talento da Rebeca, mas não apenas isso. A Jade tem muita experiência, a Flávia é talentosa, a Lorrane ficou em décimo no Mundial de 2015, a Julia está crescendo.
E a estrutura hoje é bem melhor. A gente tem um CT [centro de treinamento] maravilhoso, com fisioterapeutas, médicos, psicólogos, muito mais estruturado do que antes. A psicóloga acompanha mais de perto. Antigamente não existia nem WhatsApp para manter contato.
As redes sociais ajudam ou atrapalham?
Eu acho que elas prejudicam bastante. Tempos atrás, nossa equipe juvenil, que tem meninas boas, foram a uma competição e não se saíram bem, perderam para a Argentina. Meu Deus, a rede social acabou com elas.
Eu fiz um texto bem grande e falei: “Imagina se a sua filha estivesse lá? Você fala assim de uma menina de 13 anos porque ela caiu?”.
Ela caiu, mas quanto trabalho ela tem. A gente trabalha das 7h da manhã às 19h. E você vem de não sei onde e fica criticando?
É para cair mesmo. Ela tem que acertar quando tiver 16 anos e for para a Olimpíada.