O Supremo Tribunal Federal pode mandar para a cadeia milhares de pessoas na tarde desta quarta-feira (5/10). A corte decide se quem for condenado em segunda instância comece a cumprir pena, mesmo podendo ser declarado inocente depois. A julgar pela quantidade de pedidos de Habeas Corpus recebidos pelas cortes máximas em Brasília, o número de atingidos é da ordem de 50 mil pessoas por ano, que passariam a ter de aguardar presas a análise dos seus recursos. O número de réus condenados em segundo grau que hoje aguardam em liberdade o julgamento de recursos no Supremo e no Superior Tribunal de Justiça é incerto, mas se todos os impetrantes de Habeas Corpus nessas cortes hoje estivessem nessa situação, os estados teriam de arcar com R$ 1,1 bilhão a mais, anualmente, com o custeio de presos.
Está em jogo um princípio constitucional, a cláusula pétrea que determina com clareza que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Os processos pautados são as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, ajuizadas pelo Partido Ecológico Nacional e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Elas pedem que o Supremo reconheça que o artigo 283 do Código de Processo Penal, que exige o trânsito em julgado da condenação para o cumprimento de punições, é constitucional e prevalece sobre outras previsões legais.
Caso a corte negue os pedidos, os tribunais de segunda instância, ao condenar, já poderão mandar os réus para a prisão. Os prejudicados terão de apelar presos mesmo que inocentes, tenham tido condenação acima do permitido pela lei, ou ainda sejam submetidos a regime desproporcional. Hoje, esses casos são julgados pelo STJ e pelo STF nos mais de 50 mil pedidos de Habeas Corpus e Recursos em Habeas Corpus ajuizados anualmente.
Segundo a defensora pública-geral de Minas Gerais Christiane Procópio, o sistema carcerário sentirá imediatamente os efeitos de uma autorização do Supremo para a execução antecipada de penas. “Há perigo de agravamento do já caótico quadro de superlotação carcerária, especialmente em Minas Gerais, onde o déficit é de mais de 30 mil vagas nos presídios”, alerta. Ela conta que, depois que o Supremo concordou com a execução provisória de pena de um condenado em fevereiro, ao julgar o HC 126.292, muitos juízes já têm aplicado o raciocínio a seus casos, mesmo tendo a decisão do Supremo se referido a um caso específico. “Alguns juízes estão determinando a prisão de pessoas que aguardavam em liberdade o julgamento de recurso nos tribunais superiores. Tem-se notícia de casos em que a pessoa compareceu ao fórum para solicitar informações sobre o andamento processual, como já fazia há algum tempo, e acabou recebendo voz de prisão.”
Do total de HCs e RHCs impetrados no STJ, 9,4% são mineiros, a maior parte envolvendo tráfico de drogas. O estado tinha 61.286 de presos até 2014, segundo dados do relatório Infopen, do Ministério da Justiça. É a segunda maior população carcerária do país.
Dados da Defensoria Pública do estado de São Paulo — responsável por um quinto de todos os HC ajuizados no STJ e no STF — mostram que, nos últimos cinco anos, a média de pedidos deferidos pelos ministros é de 50%. São situações de excesso de pena, crimes de bagatela — considerados atípicos — ou regime fechado para réus primários com penas inferiores a oito anos. Distorções como essas ainda dependem de correção pelas cortes máximas porque, não raro, tribunais de segundo grau ignoram a jurisprudência, explica Rafael Muneratti, responsável pela representação em Brasília da Defensoria paulista. “O índice de concessões de HCs no STF e no STJ mostra como a segunda instância erra. Os tribunais de Justiça dos estados julgam muito mal. Como se vai confiar neles para prender as pessoas?”, questiona.
Até abril deste ano, a Defensoria de São Paulo ajuizou 2.610 pedidos de HC no STJ e no STF. As cortes concederam 1.008, o equivalente a 49% das solicitações. Em 2015, foram 8.580 pedidos, e 3.181 concessões, uma proporção de 48%. Em 2014, o índice de HCs providos foi de 45%: 7.259 pedidos, 2.395 deferidos.
Os números servem como amostragem, já que as cortes não têm levantamentos sobre a quantidade de HCs providos, só de pedidos recebidos e julgados. No STJ, foram ajuizados 44.871 HCs e Recursos em HC em 2015. E julgados 44.138. No Supremo, o total de ajuizamentos foi de 6.085, e 6.453 o de julgados.
O custo de cada preso para o erário varia conforme o estado da federação — detidos nos presídios federais custam ainda mais, mas são de alta periculosidade e exigem maior vigilância. As secretarias de administração penitenciária de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul informam despesa mensal entre R$ 1,6 mil e R$ 2 mil, de acordo com reportagem do portal iG. Por isso, uma possível virada na jurisprudência do Supremo pode garantir 50 mil presos, ao custo anual de R$ 21,6 mil por detento, totalizando R$ 1,1 bilhão em despesas aos já combalidos orçamentos estaduais. Vale lembrar que os estados negociam dívidas com o governo federal, e conseguiram acordo para deixar de pagar R$ 50 bilhões até 2018. O acordo foi exigência do próprio Supremo Tribunal Federal, para encerrar disputas judiciais entre a União e as unidades da Federação.
Para a Defensoria Pública da União, responsável pela defesa de réus acusados de crimes federais ou que sejam de estados sem defensoria estadual representada em Brasília, os números da população carcerária precisam ser reduzidos, e não aumentados. “A população prisional do Brasil já alcançou o número 622.202, sendo de se ressaltar que, apenas nos últimos 14 anos, houve um incremento da ordem de 267%, bem superior ao crescimento populacional”, diz nota assinada pelo órgão em conjunto com a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. “O Brasil ocupa o 4º lugar no ranking de países com maior população prisional, exibindo 358 pessoas presas para cada 100.000 habitantes (…) e, embora os números demonstrem a premente necessidade de redução desse contingente, a decisão proferida no bojo do HC 126.292 fornece um impulso extra para encaminhar mais pessoas ao já superlotado sistema penitenciário brasileiro”, conclui a nota, que faz menção a julgamento de fevereiro do Supremo.
De acordo com relatório do Departamento Penitenciário Nacional, só o investimento do governo federal na construção de presídios superou R$ 1,1 bilhão até 2014. Em dezembro daquele ano, quando foi feito o último levantamento, o total de presos no país era 622.202 — a quarta maior população carcerária do mundo. E faltavam 250.318 vagas para essa multidão.
Informações de 2015 do Ministério da Justiça mostram também que o aumento da taxa de encarceramento no Brasil vai na contramão da tendência de países com as maiores populações carcerárias do mundo. Enquanto a taxa aumentou 33% entre 2008 e 2013 no país, a dos Estados Unidos caiu 8%, a da China caiu 9% e a da Rússia, 24%. Na Holanda, 19 presídios foram fechados até o ano passado por falta de prisioneiros. Na Suécia foram 4, graças ao uso de penas alternativas. A economia anual é de cerca de R$ 200 mil por preso.
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Repetição de erros
O alto índice de Habeas Corpus e de Recursos Especiais concedidos em Brasília é fruto de falhas da Justiça estadual principalmente na dosimetria das penas, segundo a defensora pública Alessa Pagan Veiga, de Minas Gerais. “Erros de dosimetria alteram o regime inicial da pena e fazem com que a pessoa fique presa mais tempo do que o necessário, gerando um alto custo para o Estado”, explica. “Em Uberlândia, em cerca de 50% dos recursos trato de revisão de penas excessivas.”
No caso de São Paulo, que abriga mais de 150 mil presos, falhas na dosimetria das penas estão em 90% dos pedidos feitos pela Defensoria contra decisões do Tribunal de Justiça, de acordo com Rafael Muneratti. Além delas, são corriqueiras também condenações pelos chamados “crimes de bagatela”, que envolvem furtos de bens de pequeno valor que, por isso, são considerados “atípicos” — ou seja, na prática, não são puníveis. “É por isso que, tanto nesses casos quanto nos de determinação de regime fechado para cumprimento de penas brandas, o Supremo e o STJ concedem os Habeas Corpus, seguindo a lei”, explica o defensor público.
Quantificação do dano
Para Muneratti, discutir essa questão com base em números é tomar o caminho errado. “Não importa se são duas pessoas ou duas mil. Se alguém está preso injustamente ou mais do que o necessário, isso fere a Constituição”, diz. Christiane Procópio, chefe da Defensoria Pública estadual mineira, concorda. “As consequências são graves, primeiro porque aumenta a possibilidade de que um inocente seja encarcerado, sem ter acesso a todas as oportunidades de provar sua inocência. Na verdade essa é a razão de ser do comando constitucional”, lembra.
Muneratti relata pelo menos três condenações revertidas em Brasília que mantinham indevidamente atrás das grades pessoas que, de acordo com a lei, não deveriam pagar pelo erro. É o caso de Michel, de 20 anos, abordado por policiais em “atitude suspeita” em 2013. Autuado em flagrante pelo porte de 5 gramas de cocaína e 3,7 gramas de maconha, ele alegou ser para seu consumo e não para venda. A Justiça o manteve preso provisoriamente por 10 meses. Condenado a 1 ano e 8 meses em regime aberto por tráfico, foi novamente julgado pelo TJ paulista, que mudou o regime para fechado. O regime só foi alterado novamente para aberto quando o STJ julgou um recurso da Defensoria, em setembro do ano passado. Michel teria de aguardar preso caso o Supremo tivesse relativizado a presunção de inocência antes.
Magno, morador de rua de 34 anos, era réu primário até ser detido em flagrante, em 2012, tentando furtar 4 barras de chocolate, no valor total de R$ 17,56. Um funcionário da loja percebeu as barras escondidas nas calças de Magno e o abordou. Ele devolveu os chocolates e fugiu, mas acabou encontrado por policiais, que registraram o flagrante. Condenado a 8 meses de reclusão em regime aberto por tentativa de furto, ficou preso por quase 5 meses. O TJ-SP negou recurso da Defensoria, que alegava crime de bagatela, e manteve a condenação. Em agosto de 2016, o STJ proveu Recurso Especial e o absolveu, aplicando o princípio da insignificância. Se na época valesse uma decisão do STF contra a presunção de inocência, Magno, que acabou absolvido, teria cumprido pena injustamente.
Aos 23 anos em 2012, Ronaldo foi preso tentando furtar a bolsa de uma mulher na rua. Ela gritou e os populares a socorreram, perseguindo e detendo o rapaz, que estava com a bolsa e R$ 50 que havia dentro dela. Preso em flagrante, ficou 5 meses na cadeia, até ser solto provisoriamente. Réu primário, faltou a uma audiência e acabou condenado a 4 meses e 20 dias de reclusão em regime aberto. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a condenação, rejeitando o argumento de que o crime era de bagatela. Ronaldo esperou em liberdade o STJ aceitar recurso da Defensoria no último mês de agosto, absolvendo-o com base no princípio da insignificância. Caso a última decisão do STF sobre execução antecipada de pena valesse para Ronaldo, ele teria aguardado sua absolvição preso.
Responsável pelo pedido de amicus curiae da Defensoria Pública da União nas ADCs em julgamento no Supremo, Gustavo Zortéa da Silva também relata caso parecido. Em memoriais entregues ao ministro Marco Aurélio, ele cita o caso de um réu julgado em maio pelo STJ, acusado de tentar furtar um “produto de higiene pessoal” avaliado em R$ 17 de uma loja de departamentos. Após responder ao processo solto, ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a cumprir, em regime fechado, uma pena de 4 meses e 20 dias. Mas o STJ concedeu o HC pedido pela Defensoria Pública estadual de São Paulo devido à insignificância do valor do bem. “Por força da decisão adotada nos autos do HC 126.292, seria o réu imediatamente submetido ao regime inicial fechado com o advento da condenação de segunda instância”, alerta o membro da DPU, caso o STF tivesse mudado sua jurisprudência à época.
Fonte: ConJur