Juridicamente, atos de guerra são atos de império protegidos pela soberania de cada Estado. Por isso, um Estado só pode se submeter à jurisdição de outro em nome deles por iniciativa própria. Esse foi o entendimento usado pelo ministro Luiz Fux para negar a subida de um recurso que pedia a condenação da Alemanha pelo afundamento de um barco pesqueiro no litoral do Rio de Janeiro em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. A decisão é desta terça-feira (30/8).
Para decidir a questão, Fux fez uma pesquisa de doutrina e jurisprudência a respeito das possibilidades de um Estado julgar outro por atos cometidos dentro de suas fronteiras. E concluiu que os Estados nacionais gozam de imunidade de jurisdição em relação a outros, mas há possibilidades de relativização dessa imunidade.
A primeira possibilidade, escreve Fux, é se os atos questionados na Justiça de um país são atos de gestão praticados por outro. Ele cita a contratação de um “funcionário subalterno” para trabalhar numa embaixada como um ato de gestão.
Já os chamados atos de império, como os atos de guerra, “decorrem do exercício do direito da soberania estatal”. Portanto, a imunidade de jurisdição só poderia ser relativizada se o próprio Estado permitisse. E no caso concreto, depois de quase 20 anos de tramitação, o Estado alemão “quedou-se silente”, como afirmou o ministro Villas-Bôas Cueva, relator do caso no Superior Tribunal de Justiça.
Fux cita jurisprudência internacional para argumentar. Em 1812, no caso Exchange vs McFaddon, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que “a jurisdição da nação dentro de seu próprio território é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é suscetível de qualquer limitação que não seja imposta por ela mesma”.
Em fevereiro de 2012, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) julgou caso parecido ao decidido por Fux nesta terça. Naquela ocasião, o tribunal deu razão à Alemanha numa reclamação contra a Justiça da Itália, que vinha condenando o Estado alemão em diversos casos a pagar indenizações como forma de reparação por atos militares cometidos durante a Segunda Guerra.
No mesmo julgamento, escreveu Fux, a CIJ decidiu que a imunidade de jurisdição “prevalece mesmo diante de acusações que denotem graves violações a direitos humanos, como sói ocorrer em atos de guerra”. “Com efeito, conforme a evolução do alcance da imunidade de jurisdição já apresentado, os atos bélicos praticados por Estado estrangeiro durante período de guerra correspondem a atos de império, decorrentes do exercício de seu exclusivo poder soberano”, concluiu o ministro.
Tiro de guerra
A decisão que Fux tomou nesta terça é o capítulo mais recente da história do afundamento do barco pesqueiro Changri-Lá por um submarino nazista, no dia 22 de julho de 1943. O caso ficou mais de 60 anos sendo tratado como um desaparecimento, já que, embora se falasse na possibilidade de um ataque, não havia provas.
Só em 1999 foi que surgiram provas para mostrar que o caso se tratou de uma manobra de guerra — e que o barco não fora vítima de uma tempestade, ou afundara por “falha humana”, como se aventou na época. E a partir dali ações de reparações por danos morais foram levadas à Justiça brasileira por parentes dos tripulantes do Changri-Lá.
Naquele ano, o governo dos Estados Unidos retirou o sigilo de seus registros de guerra referentes a manobras feitas em parceria com a Força Aérea Brasileira na costa do Brasil. E ali estavam registrados depoimentos de 11 tripulantes do submarino alemão U-199, entre eles o capitão, Hans Werner Kraus.
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Foi uma reviravolta importante no caso. Em 1945, o Tribunal Marítimo brasileiro concluiu que, embora tudo indicasse que se tratava de uma ação militar, não havia provas para dizer que o desaparecimento do Changri-Lá tivesse sido causado pelo submarino.
Em 1999, essas provas surgiram e foram levadas ao Tribunal Marítimo pelo historiador Elísio Gomes Filho, então diretor do Museu Histórico Marítimo de Cabo Frio. E a corte reabriu o caso, encerrando-o em 2001 e concluindo pela culpa do submarino nazista U-Boot 199.
Tiro ao alvo
As falas dos ex-tripulantes do submarino alemão foram registradas enquanto eles estavam detidos como prisioneiros de guerra. O U-199 foi posto à pique por um ataque conjunto da FAB e da força aérea dos Estados Unidos no dia 31 de julho. Onze tripulantes, dos quase 50, sobreviveram.
De acordo com os depoimentos colhidos na época e descobertos por Elísio, o U-199 saiu da cidade de Kiel, na Alemanha, em maio de 1943, com a missão de patrulhar a costa do Rio de Janeiro. Um ano antes, Getúlio Vargas declarara guerra ao Eixo, composto de Alemanha, Itália e Japão, depois que aviões nazistas bombardearam o porto do Rio de Janeiro. Até então, Getúlio não havia decidido de que lado da guerra ficaria, se dos alemães ou dos Estados Unidos.
A tática de Hans Kraus, o capitão do submarino, era permanecer submerso durante o dia e emergir à noite. E, como não encontrasse alvos em que pudesse testar o poder de fogo do submarino, então o que havia de mais moderno na frota nazista, decidiu se aproximar mais da costa fluminense.
Na noite do dia 22 de julho, conforme depoimento do próprio Kraus, eles avistaram uma pequena embarcação com uma vela na popa. O detalhe da vela era importante, segundo o capitão nazista, porque essa não era uma prática comum em embarcações daquele porte. Portanto, ele contou ter achado que aquele barco poderia revelar a posição de sua embarcação e decidiu abatê-lo.
De acordo com os documentos que Elísio Gomes levou ao Tribunal Marítimo do Brasil, o Changri-Lá foi o único barco dado como desaparecido naquele dia, quando também não foram registradas tempestades.
O julgamento pela corte naval terminou no dia 31 de julho de 2001, exatos 61 anos depois da destruição do U-199. Naquela ocasião, o tribunal determinou que fossem tomadas as medidas para inscrever o nome dos tripulantes do Changri-Lá no Panteão dos Heróis de Guerra, o que aconteceu em 6 de junho de 2004.
Fonte: Conjur