O governo brasileiro já se prepara para a possibilidade de uma onda migratória de equatorianos rumo ao Brasil. Presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Sheila de Carvalho diz que conflito no país sul-americano evoca crises como as ocorridas no Haiti e na Colômbia, em décadas recentes, e pode gerar novos deslocamentos.
A instabilidade enfrentada pelo Equador desde o dia 9 de janeiro foi deflagrada pela fuga de um dos mais temidos chefes do narcotráfico, Adolfo Macías, de uma prisão em Guayaquil. Motins em presídios, sequestros de policiais, ataques com explosivos e o assassinato de um promotor marcam a crise de segurança pública gestada no território.
“A gente precisa se preparar na frente humanitária, na frente de cooperação internacional e na frente de cooperação das forças de segurança”, afirma Carvalho. “Não só o Brasil como também o Mercosul serão fundamentais para dar suporte para o Estado do Equador e para a população equatoriana.”
Primeira mulher negra a presidir o Conare desde a sua fundação, em 1997, Sheila de Carvalho assumiu o comitê com mais de 136 mil pedidos de refúgios à espera de uma resposta. “Tínhamos a maior fila da história”, diz ela, que também é assessora especial do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, pasta que abriga o Conare.
Além de coordenar forças-tarefas para atender à demanda expressiva, sua gestão passou a incorporar filtros voltados à análise de grupos sociais específicos, como é o caso de mulheres que vivem em países em que se pratica a mutilação genital feminina, para dar vazão ao acúmulo de solicitações de refúgio.
“Antes, o Conare era só um cartório de análise de processos. Hoje, a gente tem um mecanismo de proteção que analisa o processo e gera políticas públicas”, afirma Carvalho, que em dezembro passado viu o Brasil ser reconhecido como um país de referência pelo Fórum Global para Refugiados da ONU.
Em entrevista à coluna, a presidente do Conare fala sobre os desafios do país diante da crise do Equador, comenta a situação de haitianos e palestinos refugiados no Brasil e fala de sua expectativa para a gestão de Ricardo Lewandowski à frente do Ministério da Justiça.
A CRISE NO EQUADOR
O que acontece no Equador é um conflito que coloca em risco o próprio Estado de Direito. A gente já viu esse fenômeno em outras situações na América Latina gerando um fluxo migratório muito intenso para o Brasil. Talvez o Equador vá para um caminho similar.
Desde o início do conflito não houve solicitações de refúgio [que só podem ser feitas quando a pessoa já está em solo brasileiro], mas a gente tem uma análise de que elas podem vir. As pessoas não estão saindo de casa, há uma espécie de toque de recolher. A partir do momento em que elas conseguirem sair do Equador, há essa possibilidade.
Vejo muitos elementos parecidos com o Haiti, no sentido de que um poder paralelo toma conta de toda uma estrutura do Estado, e o Estado fica refém.
Na Colômbia, havia uma situação de deslocamento forçado durante o período das Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]. As pessoas migravam porque estavam em cenários de alto risco. Algo similar pode ocorrer também no Equador, e os países da região têm que estar preparados para atender a essa emergência humanitária.
A GUERRA E OS PALESTINOS
Hoje não há muitas solicitações em aberto porque as pessoas não estão conseguindo sair de lá [da Faixa de Gaza]. Aqueles que conseguiram chegar ao Brasil vieram junto da missão de resgate enviada pelo governo Lula.
Fizemos uma força-tarefa para identificar os casos de palestinos e israelenses que estavam no Brasil com solicitação de refúgio para conceder a medida de proteção internacional.
Uma vez considerada refugiada, abre-se a possibilidade de os familiares conseguirem um visto para se unir a essa pessoa no Brasil. A questão da reunificação familiar é muito importante, e por isso que eu também quis acelerar as solicitações.
O Brasil é um Estado que reconhece palestinos enquanto refugiados, o que significa reconhecer que lá existe um conflito humanitário, que aquelas pessoas são cidadãs do Estado da Palestina e que elas são dignas e necessitadas de proteção internacional.
Eu penso especialmente nas crianças, porque no Brasil elas também são consideradas refugiadas. Pensar que hoje a gente tem mais de 10 mil crianças palestinas assassinadas mostra como é importante ter um olhar atento para esse grupo.
HAITI
O Haiti é uma questão constante há 13 anos. Só que o fluxo de vinda para cá diminuiu porque as pessoas não estão conseguindo sair de lá.
O Brasil hoje tem a única embaixada que funciona no país, e por isso é muito demandado. É um cenário em que a gente não consegue nem ter um prédio consular, só uma salinha dentro de uma organização internacional.
A reunificação familiar haitiana foi uma das principais demandas desse último ano.
A FILA NO CONARE
Quando a gente pegou o Conare, no começo do ano passado, tínhamos a maior fila de processos de solicitação de refúgio pendentes de julgamento da história do comitê. Eram 136 mil.
Tinham pessoas que estavam esperando por uma resposta havia mais de dez anos. E a gente conseguiu oferecer, se não a resposta do refúgio, pelo menos uma alternativa para a regularização migratória no Brasil.
Todo mês tinha uma força-tarefa diferente, em relação a algum segmento, a algum país, para que a gente conseguisse dar vazão para os pedidos que estavam pendentes.
Com a solicitação de refúgio, a pessoa pode ir na Polícia Federal e abrir os documentos. Com isso, ela já consegue ter uma carteirinha do SUS, uma identidade, abrir uma conta no banco. Consegue começar a reconstruir uma vida.
A gente já conseguiu fazer uma análise de 139.800 processos, no todo.
Hoje, são cerca de 60 mil pendentes porque aumentou muito o número de solicitações mensais frente a outros momentos. Chegam cerca de 5.000 por mês. Estamos vivendo a maior situação de deslocamento forçado que o mundo já viveu em toda a história da humanidade.
PORTA DE ENTRADA
O Brasil sempre teve uma política migratória até positiva frente a outros países. A gente nunca sabe de qual país vai vir o próximo fluxo, mas eu sempre digo que a certeza que eu tenho é a de que sempre vai haver um fluxo.
Quando falamos em pessoas refugiadas, normalmente falamos de um cenário de deslocamento forçado, em que a pessoa não tinha outra opção senão sair. Precisamos ter um olhar humanitário.
São pessoas que conseguiram ter o mínimo de condições para deixar os seus países de origem. Aqueles que são mais pobres, dentro desses cenários de conflito, raramente conseguem sair.
Esses refugiados se tornam pessoas em situação de vulnerabilidade porque perdem suas casas, perdem sua identidade e, muitas vezes, até a sua cidadania.
No caso dos afegãos [que vieram ao Brasil], por exemplo, há juízes, promotores, engenheiros, CEOs de empresas, militares de alta patente, médicos. São eles que se tornam refugiados no Brasil.
CASOS NEGADOS
A maior parte das solicitações de refúgio são indeferidas porque não cumprem os requisitos. O refúgio é uma sistemática muito única de proteção internacional. Ela acontece quando há conflitos conflagrados, graves violações de direitos humanos, discriminações e perseguição política. Nem todas as situações cabem.
A gente tem que fazer análise de caso por caso. Há cenários, por exemplo, em que há pedidos de extradição por perseguição política, mas há casos em que se pede a extradição porque a pessoa realizou crimes comuns. O que for uma situação de refúgio em que a perseguição política fique evidente, a gente dá processamento. O que não for, a gente indefere para que a pessoa seja responsabilizada de forma adequada.
SOB NOVA DIREÇÃO
Acredito que o ministro Lewandowski vai dar continuidade a um olhar humanitário para esse sistema de proteção. Ele foi um dos primeiros ministros do Supremo Tribunal Federal a incorporar decisões internacionais em suas determinações. Ele tem um olhar atento para o que acontece no mundo.
Acredito que uma continuidade de um trabalho humanitário é muito esperado, até porque o presidente Lula já nos sinalizou que, sim, temos que acolher e temos que manter nossas políticas humanitárias. Tenho a expectativa de que as boas políticas se perpetuem na futura gestão do ministro Lewandowski.